quinta-feira, março 27, 2003

(CONTINUAÇÃO)
"No velório, ela andava encostando-se pelos cantos e nas pessoas. Os olhos ainda estavam inchados de tanto chorar, sentia o corpo fraco por uma apatia que nunca havia sentido. Mas as lembranças cada vez mais tendiam a confirmar que ele nunca tivesse terminado com ela e ela sentia quase uma espécie de alívio por ter deixado de sentir saudade de alguém vivo, uma das piores agonias pelas quais um ser humano pode passar. Saudade de alguém que não lhe quer. Agora, ela sentia falta de alguém morto, que estivera com ela até o fim, e que uma tragédia arrancara dela e a impedira de dizer que o amava. Era terrível, mas suportável, poético até. Quem sabe ela não morreria de amor e a história não ficaria ainda mais perfeita?

Alguém estava falando.
- Estranho, não é?
Ela olhou o homem que lhe dirigia a palavra. Nunca o havia visto antes. Teve vontade de responder: “Estranho? Sim, você é um estranho. Agora deixe-me sozinha com a minha dor e vá lá conversar com algum primo do Pedro que não gostava dele e só está aqui por curiosidade mórbida.” Em vez disso, disse, automaticamente:
- Sim, estranho...
- Estranho você ter duas lembranças, não é? Duas situações inversas... e que convivem aí na sua cabeça como se tivessem ambas realmente ocorrido paralelamente. Uma delas já está mais forte?
Todos os sinais de alerta de repente começaram a soar nela.
- Quem é você?
- Eu sou a pessoa que vai responder as perguntas que se formaram na sua cabeça desde que o acidente aconteceu.
- Como você sabe de tudo isso?
- Eu venho do lugar para onde o seu namorado... ou ex-namorado... deveria estar indo. No entanto, parece que alguém lá gosta muito dele. Ou não gosta, porque não o quer lá.
- O quê?
- E esse alguém não deve gostar de você também porque me encarregou de entregar a você um tremendo abacaxi. Se você quiser, você pode trazer o Pedro de volta.
- Você é um... anh.... anjo?
- Essa denominação é um pouco atrasada mas, OK, acho que você entenderá melhor assim. Sou um anjo, então.
- E disse que eu posso trazê-lo de volta?
- Veja você. É um alívio ele não ter terminado com você, né? Poder chorar a morte dele... remexer as coisas de vocês, as cartas, saber que o amor de vocês foi bonito até o fim, que foi o tempo que errou e tudo o mais. Você sofre menos agora do que sofreu quando ele cuspiu na sua cara que todo esse amor que você achava que ele tinha era baboseira.
- Não é bem assim...
- Não? Então tá. Para trazê-lo de volta, basta você escolher a otura realidade, a que já estava ficando mais fraca aí na sua cabeça e que ia acabar desaparecendo. A mais terrível: ele vive, anda e respira em algum lugar, mas não te ama e nem nunca vai te amar. Prefere ficar sozinho que ficar com você.
Ela sentiu que o sangue lhe fugia da face.
- Você não pode estar falando sério.
- Estou. E sabe o que é mais incrível? A partir de agora, o que você escolher é o que estará valendo. Significa que se você preferir que ele fique vivo, esquecerá toda essa história do acidente e tudo voltará a ser como antes. Se escolher não trazê-lo de volta, esquecerá que um dia ele deixou você e poderá entregar-se totalmente a essa realidade que trouxe alívio para você. Escolhe.
***
Primeiro ela viu a bicicleta. Um jovem bonito, de uns 17 anos, a pilotava com orgulho e segurança, descendo a ladeira a toda velocidade. Rebeca sorriu ante a empolgação com a qual ele seguia em frente. Abaixou os olhos e já ia continuar a fazer as palavras cruzadas com as quais estava atracada, quando ouviu um barulho de motor muito velho. Um carro caindo aos pedaços vinha logo atrás e, dentro, ela de alguma forma sabia, estava Pedro. Era estranho porque aquele não era o carro dele. Ele parou, saiu do carro e levou uma das mãos à cabeça. Ela quase podia ouvir o ex-namorado resmungar algum impropério. Ainda doía pensar que teria ouvido aqueles resmungos pelo resto de seus dias, mas à medida em que o tempo passava sofria menos. Olhou para ele, acenou e gritou:
- Oi, Pedro. Quer ajuda aí?
- É essa droga de carro que eu arrumei emprestado... – ele começou a gritar de volta. Ela levantou-se e aproximou-se dele. Se não poderia ouvir os resmungos para sempre, queria ouvi-los naquele momento um pouco mais de perto."

Fim do conto "A Volta", redigido em 24/03/2003



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